Melhoramento Genético Participativo: Uma Abordagem Sustentável para a Agricultura Familiar

Por Antônio Gilson Gomes Mesquita, biólogo |||||

A agricultura familiar desempenha um papel crucial na produção de alimentos e na segurança alimentar global. Em regiões com condições climáticas adversas, como por exemplo, o semiárido nordestino, a necessidade de variedades de plantas adaptadas a esses ambientes é ainda mais crucial. O melhoramento genético participativo (MGP) surge como uma abordagem promissora para atender a essa demanda, combinando o conhecimento tradicional dos agricultores com os princípios científicos do melhoramento genético. Diferentemente do melhoramento convencional, que muitas vezes prioriza o ganho de produtividade em detrimento de outros fatores, o MGP busca desenvolver variedades que atendam às necessidades específicas dos agricultores familiares, considerando suas preferências, seus sistemas de produção e os desafios ambientais locais.

O Melhoramento Genético Participativo (MGP) teve suas origens em 1967, quando Jim Shepherd, na Austrália, e AGH Parker, na Nova Zelândia, iniciaram os “Programas de Melhoramento em Grupo (PMG)” como resposta à insatisfação com os métodos tradicionais de melhoramento genético. Este movimento buscava envolver os agricultores no processo de seleção e desenvolvimento de variedades que atendessem melhor às suas necessidades e condições locais24.

Na década de 1970, o PMG se expandiu para outros países, incluindo África do Sul e Grã-Bretanha, ampliando o alcance do conceito2. A evolução do PMG foi significativa na década de 1980, quando a introdução da metodologia BLUP (Best Linear Unbiased Prediction) possibilitou a criação de esquemas de reprodutores referência, aumentando a precisão na seleção genética.

Em 1990, o conceito de PMG foi reformulado e consolidado sob o termo “Melhoramento Genético Participativo”, que permanece em uso até hoje. Essa abordagem enfatiza a colaboração entre melhoristas e agricultores, permitindo que o conhecimento local e as práticas tradicionais sejam integrados ao processo de melhoramento genético. O MGP não apenas busca aumentar a produtividade agrícola, mas também visa a conservação da diversidade genética e a adaptação das variedades às condições locais, promovendo assim a segurança alimentar e a sustentabilidade.

Essa modalidade de melhoramento começou a ser desenvolvida no início da década de 1990 e tem como elemento central a integração dos conhecimentos, habilidades, experiências, práticas e preferências dos agricultores. Ela fundamenta-se na genética vegetal convencional, fitopatologia e economia, ao mesmo tempo que incorpora aspectos da antropologia, sociologia, saberes dos produtores e princípios de pesquisa de mercado e desenvolvimento de produtos.

O MGP se fundamenta na premissa de que os agricultores possuem um profundo conhecimento do seu ambiente e das variedades que cultivam. Esse conhecimento, acumulado ao longo de gerações, é essencial para a identificação de características desejáveis ​​em novas variedades e para a seleção de plantas mais adequadas às condições locais. Ao integrar esse saber tradicional aos conhecimentos científicos do melhoramento genético, o MGP busca desenvolver variedades mais adaptadas, com maior produtividade, qualidade nutricional e resistência a pragas e doenças.

Além dos benefícios diretos para a produção agrícola, o MGP promove a conservação da agrobiodiversidade, a autonomia das comunidades rurais e a sustentabilidade dos sistemas agrícolas. Ao valorizar e integrar o conhecimento local, o MGP estimula a troca de saberes entre agricultores e pesquisadores, fortalecendo os laços entre a ciência e a agricultura familiar.

Este artigo apresenta uma revisão abrangente sobre o MGP, explorando seus princípios, metodologia, aplicações e impactos. Com base em uma análise crítica da literatura científica, o estudo busca demonstrar a importância do MGP para a promoção de uma agricultura familiar mais sustentável e resiliente.

Material e Métodos – A base deste estudo consiste em uma revisão aprofundada da literatura científica sobre o tema do Melhoramento Genético Participativo. A pesquisa bibliográfica foi realizada em bases de dados online, como Scopus, Web of Science e Google Acadêmico, utilizando palavras-chave como “melhoramento genético participativo”, “agricultura familiar”, “sustentabilidade” e “agrobiodiversidade”. Além disso, foram consultados documentos técnicos e dissertações relevantes para o tema.

A seleção dos materiais incluiu artigos publicados em periódicos científicos, capítulos de livros, relatórios de pesquisa e outros documentos que abordam os princípios, a metodologia e as aplicações do MGP. A análise dos documentos selecionados buscou identificar os principais conceitos, métodos e resultados relacionados ao MGP, com foco em sua relevância para a agricultura familiar e a sustentabilidade.

Discussão – O MGP se destaca como uma abordagem inovadora que reconhece o papel central dos agricultores no processo de desenvolvimento de novas variedades. Em contraste com o melhoramento convencional, onde os agricultores geralmente assumem um papel passivo, o MGP incentiva a participação ativa dos agricultores em todas as etapas do processo, desde a definição dos objetivos de seleção até a avaliação das variedades em seus próprios campos.

O melhoramento participativo possui diversos objetivos, que se estendem além dos do melhoramento formal ou convencional. Entre suas metas estão o aumento da produtividade, que é comum ao melhoramento convencional, a conservação e promoção da biodiversidade por meio da criação de variabilidade genética, e a obtenção e desenvolvimento de germoplasma adaptado, seja por meio de variedades modernas ou locais, dependendo das necessidades dos usuários, especialmente aqueles menos favorecidos, como mulheres e agricultores de baixa renda.

Outras metas incluem a seleção dentro de populações, a avaliação experimental de variedades (PVS – seleção participativa de variedades), o lançamento e a divulgação de novas variedades, a diversificação do sistema produtivo e a produção de sementes. A estrutura organizacional desse processo é totalmente descentralizada, com o trabalho sendo realizado em colaboração com grupos de produtores e comunidades agrícolas. O lançamento formal de variedades pode ou não ocorrer, e a difusão das sementes acontece tanto em contextos formais quanto locais.

A participação dos agricultores é fundamental para garantir que as novas variedades atendam às suas necessidades e preferências específicas. As características desejáveis em uma variedade podem variar significativamente entre diferentes comunidades e sistemas de produção, considerando fatores como adaptação ao clima, resistência a pragas e doenças, qualidade nutricional, sabor, formato e tamanho. O MGP reconhece essa diversidade de necessidades e busca desenvolver variedades que sejam adequadas à realidade local.

O MGP se baseia na utilização de uma variedade de ferramentas participativas que facilitam a comunicação e a interação entre agricultores e pesquisadores. Algumas das ferramentas mais utilizadas no MGP incluem:

a) Tempestade de Ideias: O objetivo dessa ferramenta é permitir que os agricultores familiares definam os critérios (características das plantas) para avaliação e seleção. Nesse processo, o grupo de agricultores identifica as características das plantas, ou de partes delas, que consideram mais relevantes para seus contextos específicos. A aplicação da ferramenta envolve a distribuição de uma quantidade igual de cartões de papel para cada agricultor. Eles anotam, nesses cartões, os critérios que julgam mais importantes. Posteriormente, os cartões com critérios semelhantes são agrupados e contabilizados, permitindo a definição dos principais critérios com base nas visões e preferências dos agricultores;

Figura 1 – Ferramenta de Tempestade de Ideias (Brainstorming) Fonte: https://www.rdstation.com/blog/agencias/o-que-e-brainstorming/

b) Matriz de Classificação: Essa ferramenta permite a seleção de variedades com base em características específicas e, posteriormente, a comparação e ranqueamento entre elas. O processo consiste na criação de uma matriz, onde os critérios definidos na ferramenta de tempestade de ideias são dispostos nas linhas e as variedades nas colunas. Cada agricultor recebe a mesma quantidade de grãos, independentemente da espécie, para que possa votar individualmente nas variedades conforme cada critério. Se um agricultor considera que uma variedade é superior a outra em relação a um determinado critério, ele coloca um maior número de grãos no quadrado correspondente da matriz. Ao final do processo, a quantidade de grãos em cada coluna é contada, resultando na nota total da variedade. Da mesma forma, a contagem é realizada por linha para determinar o valor total de cada critério;

Figura 2 – Ferramenta participativa matriz de classificação para seleção de materiais com base nos critérios definidos pelos agricultores na ferramenta tempestade de ideias, seguida da Matriz com os totais resultantes da preferência dos agricultores. Fonte: Maria Aldete Justiniano da Fonseca Ferreira

c) Seleção com Espetos de Madeira: Essa ferramenta possibilita a seleção de plantas ou partes de plantas, tanto no campo quanto em casas-de-vegetação, além de mudas em viveiros. O método consiste em distribuir uma quantidade igual de espetos de madeira para cada agricultor, que, com base em seus próprios critérios ou aqueles definidos na ferramenta de tempestade de ideias, identificam as plantas ou partes de suas preferências. O processo pode ser encerrado nessa etapa se o objetivo for apenas avaliar as plantas. No entanto, se a intenção incluir a seleção de frutos, o número de espetos colocados em cada planta é contado, assim como nos frutos das plantas mais votadas, cuja quantidade é determinada pelos agricultores. Esses frutos podem ser avaliados utilizando esta ferramenta ou outra, como a Matriz de Classificação; e

Figura  3 – uso da ferramenta participativa “espetos de madeira” para seleção de materiais no campo, com a qual o agricultor faz sua opção, seguida da planta selecionada que obteve o maior número de espetos. Fonte: Maria Aldete Justiniano da Fonseca Ferreira Fonte: Maria Aldete Justiniano da Fonseca Ferreira

d) Diagnóstico Rural Participativo (DRP): O DRP é um conjunto de técnicas que visam o envolvimento da comunidade na identificação de seus problemas, necessidades, recursos e potencialidades. Através do DRP, os agricultores podem expressar suas prioridades em relação ao desenvolvimento de novas variedades, e os pesquisadores podem obter informações sobre o sistema de produção local, as práticas agrícolas tradicionais e os conhecimentos dos agricultores.

Figura 4 – Diagnóstico Rural Participativo traça sonhos e planejamento para assentamento Laje, no Espírito Santo.
Fonte: Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade e Instituto de Pesquisas Ecológicas (ESCAS/IPÊ).

A aplicação do MGP tem demonstrado resultados promissores na obtenção de variedades adaptadas a diferentes realidades, com ganhos em produtividade, qualidade e resistência a pragas e doenças. Estudos demonstram que variedades desenvolvidas por meio do MGP apresentam maior aceitação pelos agricultores, o que contribui para a sua rápida difusão e adoção.

Alguns exemplos do sucesso do MGP podem ser encontrados em diversas culturas e regiões do Brasil, a saber:

1) Bucha Vegetal: O desenvolvimento de variedades de bucha vegetal (Luffa cylindrica) adaptadas ao cultivo orgânico no norte de Minas Gerais. A Embrapa, em colaboração com agricultores familiares, utilizou o MGP para selecionar variedades que apresentassem características como alta produtividade, frutos de boa qualidade para artesanato e adaptação ao sistema de produção orgânico;

2) Milho: O desenvolvimento de variedades de milho crioulo adaptadas às condições do oeste catarinense, com foco na resistência a pragas e doenças, alta produtividade e qualidade nutricional. O programa de MGP, coordenado pela Universidade Federal de Santa Catarina, envolveu a participação de agricultores familiares em todas as etapas do processo, resultando em variedades que atendem às necessidades específicas da região;

3) Goiabeira-Serrana: O desenvolvimento de variedades de goiabeira-serrana (Acca sellowiana) adaptadas às condições climáticas e de solo da Serra Gaúcha. O programa de MGP, realizado em parceria com o Centro Ecológico, uma ONG local, buscou selecionar variedades com características como alta produtividade, frutos de boa qualidade, resistência a doenças e adaptação aos sistemas agroflorestais da região; e

4) Feijão-Caupi: O desenvolvimento de variedades de feijão-caupi (Vigna unguiculata) adaptadas às condições do semiárido nordestino, com foco na produção de feijão verde. O projeto, realizado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco, em parceria com agricultores familiares do assentamento Passagem Velha, em Petrolina-PE, buscou selecionar variedades que atendessem às preferências dos agricultores e ao mercado local de feijão verde.

Os benefícios do MGP se estendem além dos ganhos diretos na produção agrícola, contribuindo para:

a) Conservação da Agrobiodiversidade: O MGP valoriza e utiliza a diversidade genética presente nas variedades crioulas e locais, contribuindo para a sua conservação e o enriquecimento da base genética das culturas. A participação dos agricultores no processo de seleção garante que as variedades mais adaptadas e importantes para a cultura local sejam preservadas;

b) Fortalecimento das Comunidades Rurais: O MGP promove o empoderamento dos agricultores, incentivando a troca de saberes e a participação ativa no processo de desenvolvimento de novas variedades. O MGP fortalece os laços comunitários, a auto-estima e a autonomia dos agricultores; e

c) Promoção da Segurança Alimentar: O desenvolvimento de variedades adaptadas às condições locais, com maior produtividade e qualidade nutricional, contribui para a segurança alimentar das famílias agricultoras e das comunidades rurais. O MGP também incentiva a diversificação de culturas, o que aumenta a oferta de alimentos e nutrientes.

Apesar dos benefícios, até aqui, demonstrados, o MGP ainda enfrenta desafios para sua ampla difusão e implementação. Alguns dos principais desafios incluem:

1) Recursos Limitados: A implementação de programas de MGP exige investimentos em pesquisa, extensão rural e capacitação de agricultores e pesquisadores. A falta de recursos financeiros e humanos pode limitar o alcance e a efetividade do MGP;

2) Dificuldades Metodológicas: O MGP requer a adaptação de métodos de pesquisa e extensão para o contexto da participação dos agricultores. A falta de métodos e ferramentas adequadas pode comprometer a qualidade dos dados coletados e a validade das conclusões; e

3) Desafios Institucionais: A integração do conhecimento tradicional dos agricultores aos sistemas de pesquisa e extensão rural exige mudanças nas estruturas e nas culturas institucionais. A resistência à mudança e a falta de diálogo entre diferentes áreas do conhecimento podem dificultar a implementação do MGP.

A superação desses desafios exige o desenvolvimento de políticas públicas que incentivem o MGP, o investimento em pesquisa e extensão rural participativa e a capacitação de agricultores e pesquisadores para o trabalho colaborativo.

Conclusão – O Melhoramento Genético Participativo se apresenta como uma estratégia promissora para o desenvolvimento de variedades de plantas adaptadas às necessidades e aos desafios da agricultura familiar, promovendo a sustentabilidade social, econômica e ambiental. A integração do conhecimento tradicional dos agricultores aos conhecimentos científicos do melhoramento genético, por meio de métodos participativos, resulta em variedades mais resistentes, produtivas e adequadas às condições locais, além de fortalecer as comunidades rurais, promover a conservação da agrobiodiversidade e contribuir para a segurança alimentar.

É essencial que governos, instituições de pesquisa, organizações da sociedade civil e o setor privado invistam na ampliação dos programas de MGP, no desenvolvimento de metodologias participativas e na capacitação de agricultores e pesquisadores para o trabalho cooperativos. O MGP representa uma oportunidade única para construir um sistema alimentar mais justo, sustentável e resiliente, baseado no diálogo, na troca de saberes e no respeito à diversidade cultural e biológica.

Antônio Gilson Gomes Mesquita é biólogo, M.S., D.S., Melhorista de Plantas, Professor Titular do Centro de Ciências Biológicas e da Natureza da Universidade Federal do Acre. Br 364, Km 04, Distrito Industrial, CEP: 69920-900. Rio Branco, AC. E-mail: mesquitaagg@gmail.com ou antonio.mesquita@ufac.br.

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