Caboclo d’água

Por Márcio Vicente* |||||

Em minhas idas a Pirapama uma visita que jamais deixei de fazer, mesmo se o tempo fosse curto, era ao Zezito, amigo de meu pai. Ele fora ajudante de caminhão de nosso tio Arquimínio, “valendo por dois” pela força física e disposição para o trabalho. Dizem que era valentão e que, certa vez em Belo Horizonte, enfrentara dois guardas-civis, pondo-os para correr. Fez apenas o curso primário, era polido no trato com as pessoas e possuía inteligência privilegiada.

Quando nosso pai foi prefeito e, numa parceria da Prefeitura com a Paróquia de Sant’Ana a cidade ganhou seu primeiro sistema de iluminação elétrica, o Zezito foi contratado para “tomar conta” do equipamento. Para girar a pesadíssima manivela e fazer o grande motor a diesel “pegar”, só mesmo alguém com força física como a dele.

Tendo como instrutor o empresário e mecânico Cleto Verdolin, de Sete Lagoas, Zezito não só aprendeu a pôr a máquina para funcionar como, também, assimilou conhecimentos para reparar seus pequenos defeitos. O sistema elétrico funcionou assim por muitos anos, até que, ainda no governo de nosso papai, a Prefeitura contratou com a Companha Cedro Cachoeira o fornecimento de 100 kilowats de energia, produzida em sua usina da Serra do Cipó e que chegava a Pirapama através de uma rede de alta tensão que tinha início em Jequitibá.

Zezito ampliou seus conhecimentos e aprendeu o ofício de eletricista. Aliás, numa de minhas visitas, mostrou-me um livrinho de capa dura – “Manual do Eletricista” – chamando a atenção para a inscrição da contracapa. Lá estava: “Impresso na França”. Diante de minha curiosidade sobre a data da publicação (1949), explicou: “Foi presente de seu pai, e guardo como lembrança. Devo a ele muitas obrigações”.

Numa de minhas visitas e depois de colher informações sobre a história de Pirapama, que ele conhece como ninguém, perguntei sobre aquela “arenga antiga” de o Antônio Cabeçudo ser filho de caboclo d’água… Meu interesse tinha razão de ser: Cabeçudo, exímio furador de cisternas, era meu companheiro de pescarias no Rio das Velhas. Garoto ainda, papai só me permitia essa “aventura” com ele: excelente nadador e canoeiro conhecia, como ninguém, as traiçoeiras do rio, e tinha uma exagerada sorte para a pescaria.

Sou testemunha de que enfiava a cabeça n’água, dizia estar “assuntando” os peixes para escolher o anzol adequado e a melhor isca. Mostrava-se infalível em sua investigação. Cabeçudo era também compadre de papai, e acredito que, já bem velho e fraquejando, tenha sido contratado para fazer pequenos serviços em nossa casa. Lembro-me, ainda, de que gostava de uma boa cachaça e, quando exagerava nas doses, fazia-se de valentão e provocava briga. Desafiava colegas de bebedeira dizendo ser “mais macho” do que qualquer um deles. A cena se repetia: abria a braguilha e exibia os colhões, onde quem quisesse poderia conferir: havia três “bagos”…

Zezito, ante a pergunta sobre a origem misteriosa do Cabeçudo, que todos em Pirapama “sabiam” ser mesmo filho de caboclo d’água, mostra-se surpreso:

“Então ocê não conhece a história?”.

O avô de Zezito era canoeiro e ganhava a vida negociando com os moradores das margens do Rio das Velhas: enchia sua grande canoa com ferramentas, armarinhos, sapatos, chapéus, armas e munição (e “mil” outros produtos) que adquiria a crédito no comércio do arraial e os vendia rio abaixo. Viagem de quatro dias descendo (segunda a quinta), ajudado pela correnteza, e de dois dias subindo (sexta e sábado), navegando devagar, à força de seu remo.

Sempre dormia na embarcação, e tinha os pontos certos onde poitar para passar a noite. Um desses locais era a barra de um córrego, nas proximidades da Fazenda da Taboquinha, próspera e afamada propriedade da Família Monteiro.

Certo fim de tarde e já se preparando para o pernoite, o barqueiro sente a canoa adernar; e nem demorou a descobrir a causa: duas grandes mãos, peludas, seguravam nas bodas da embarcação. Num átimo, pega o facão e dá um golpe. Vê quatro dedos caírem a seus pés, no fundo da embarcação, e ouve o grito lancinante de um vulto que mergulha no caudal.

Imediatamente, a água se turva de vermelho e o barqueiro não sufoca um grito: “Meu Deus. É caboclo d’água”. Recolhe a poita e, com remadas vigorosas, desce o rio até encontrar pouso mais seguro.

Na fazenda, a mulher do proprietário reclama com o capataz que “tem gente roubando milho na horta”. De fato, ela cultivava pequena quantidade do cereal nos fundos da casa grande, junto com as hortaliças, para ter à mão, com rapidez e facilidade, algumas espigas verdes para fazer mingau ou assar – iguarias que todos muito apreciavam.

O empregado logo se prontifica a dar uma incerta no local e pegar o ladrão. E fez isso já no dia seguinte. Com o auxílio de alguns vaqueiros, tão espertos quanto curiosos, o cerco foi montado. Já de madrugadinha, eles escutam barulho de pés de milho sendo quebrados e correm para o local. Logo identificam um vulto e partem para aprisioná-lo com o auxílio de laços e arreatas.

Há luta, gritos e imprecações, mas o ladrão acaba dominado e levado para o paiol da fazenda. Lá, a surpresa: era um homem nu, peludo, baixinho e muito feio, que “rosnava” e babava, atacando quem se atrevesse a se aproximar. E havia nele algo de curioso: faltavam quatro dedos na mão esquerda. Sinhá foi avisada e, com grande acompanhamento de serviçais, foi ao paiol. Não precisou se aproximar muito para identificar o intruso: “É caboclo d’água! E agora, meu Deus?”

Nem Zezito sabia como aquele “elementar” foi tratado, acostumou-se com a vida na fazenda, aprendeu uma linguagem rudimentar, com a qual se fazia entender e já prestava alguns pequenos serviços, como buscar lenha e varrer o terreiro… Tal processo de “aculturação” foi lento e de pouca utilidade. Caboclo – era assim que o chamavam – dormia numa cama improvisada no paiol, não adquiriu hábitos civilizado para comer e nem nutria algum tipo de afeição por alguém.

Durante certo tempo, foi alvo da curiosidade dos que visitavam a antiga, grande e famosa propriedade rural. Depois, nada mais parecia perturbar a rotina dos Monteiros, exceto o dia em que uma empregada chamou a atenção da patroa para uma “novidade”: Ritinha – uma boba adotada, de mais ou menos vinte anos e que vivia na fazenda (aliás, no sertão, toda fazenda abrigava um bobo…) – apareceu de barriga “inchada”.

O diagnóstico saltou à vista: estava grávida… do Caboclo. Dessa união natural, ditada pelo instinto, nasceu Cabeçudo…

De volta a Sete Lagoas, silencioso e mergulhado em pensamentos que me levavam à velha terra e aos meus tempos de criança, tento lembrar-me como era o amigo. Baixinho, pernas e braços curtos e peludos, cabeça grande e desproporcional com o tronco, cabeça “simiesca” (só agora, recompondo seu retrato, posso notar os detalhes), de fato, nada no Cabeçudo se parecia com “gente”.

Vendo-me como em estado de enlevo e perplexidade, Vera pergunta: “Você acreditou nessa história?” Meu Deus! Como duvidar? Convivi com ele…

* Márcio Vicente nasceu em Santana de Pirapama. Foi jornalista, historiador e escritor em Sete Lagoas. O conto foi extraído do livro “Peixe – Aprendendo a Nadar”, a ser publicado pela família.

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