Por Karen Veiga Brum1; Mel Cristina de Souza Oliveira1; Jeziel Antonio Alves Dias2; Amilton Ferreira da Silva3; Giann Braune Reis4; Liliane Maciel de Oliveira4
Quando pensamos em cafés de alta qualidade, a imagem que vem à mente geralmente é a de plantações em regiões de grande altitude. De fato, nessas áreas, o clima favorece a maturação lenta dos frutos, permitindo o desenvolvimento completo de compostos precursores de aromas e sabores. No entanto, pesquisas recentes têm mostrado que não é necessário estar em grandes altitudes para produzir cafés especiais. Com técnicas de manejo adequadas, cultivares bem escolhidas e cuidados no pós-colheita, é possível obter bebidas de excelente qualidade mesmo em regiões de baixa altitude. Dentro desse contexto, a fermentação surge como uma ferramenta promissora, capaz de intensificar sabores e aromas, tornando-se um aliado estratégico na produção de cafés diferenciados.

Cultivo e desafios em baixa altitude
Apesar de promissor, o cultivo em regiões de baixa altitude apresenta desafios naturais. Temperaturas elevadas aceleram a maturação dos frutos, encurtando o período de acúmulo de açúcares e compostos aromáticos, o que pode resultar em grãos menos densos e bebida com acidez mais baixa. Além disso, essas áreas tendem a ter maior incidência de pragas e doenças favorecidas pelo calor, exigindo manejo fitossanitário rigoroso. Por isso, a seleção de cultivares resistentes, aliada a técnicas de sombreamento e irrigação, é essencial para equilibrar os efeitos do microclima e garantir qualidade e produtividade.
Uma unidade experimental de cultivo de cafés foi implantada dentro da Universidade Federal de São João del-Rei, campus Sete Lagoas. A cidade situa-se na Região Central Mineira, a cerca de 750 m de altitude. Trata-se de uma área sem tradição na produção de cafés, por estar em uma zona considerada marginal, ou seja, no limite de altitude e de temperatura adequadas à cafeicultura. Neste campo experimental, foi implantada uma série de cultivares com o objetivo de identificar as mais adaptadas. De acordo com o Prof. Dr. Amilton Ferreira da Silva, responsável pela unidade experimental, um dos grandes desafios da região, além dos períodos de temperaturas elevadas, é a pluviosidade irregular, que torna o uso de irrigação praticamente obrigatório.
Apesar desses desafios, o melhoramento genético, aliado a um bom manejo, tem gerado bons resultados, demonstrando que já existem materiais genéticos adaptados às condições locais, capazes de apresentar boa produtividade. Entre as cultivares da espécie arábica avaliadas, as que melhor se adaptaram até o momento, após sete anos de implantação, são a Catucaí 2SL e a Arara. Outras cultivares também vêm demonstrando potencial, mas necessitam de mais tempo para comprovar melhor sua adaptabilidade.
Fermentação: potencializando a qualidade da bebida
Nos últimos anos, tem crescido a demanda por cafés de maior qualidade, com sabores e aromas diferenciados. Esse movimento impulsionou o crescimento dos chamados cafés gourmet e cafés especiais, produzidos com maior cuidado em todas as etapas, desde o cultivo, até o processamento. Nesse contexto, a fermentação controlada tem se destacado como uma ferramenta importante para agregar valor à bebida e criar perfis únicos de sabor.
A fermentação controlada dos frutos de café, tradicionalmente realizada de forma espontânea, vem sendo cada vez mais explorada como uma estratégia para valorizar a qualidade sensorial. O processo pode ser conduzido de forma simples nas fazendas, utilizando bombonas, bags ou tanques de cimento, com controle adequado do tempo de fermentação. Essa etapa é capaz de alterar a composição química dos grãos, modificando o sabor e o aroma da bebida. Diferentes técnicas de fermentação — em estado sólido ou submerso, com frutos naturais ou descascados, com ou sem o uso de microrganismos selecionados — influenciam diretamente o perfil sensorial final. Dependendo do protocolo adotado, podem surgir notas de caramelo, chocolate, nozes e até frutas tropicais, mostrando que a fermentação pode ser direcionada para criar perfis aromáticos específicos e diferenciados.
Além de influenciar o sabor e o aroma, a fermentação também pode contribuir para a segurança do café. Quando conduzida de forma controlada, essa etapa inibe o crescimento de fungos indesejáveis, conhecidos como bolores, que podem produzir micotoxinas — substâncias tóxicas capazes de causar sérios danos à saúde. No café, a ocratoxina A é a mais comum e está associada a doenças renais e ao aumento do risco de câncer. Assim, ao limitar a presença desses fungos, a fermentação pode atuar como uma aliada na qualidade e segurança do produto final.
Durante a safra de 2024, um estudo realizado no campo experimental da Universidade Federal de São João del-Rei – Campus Sete Lagoas (UFSJ/CSL) avaliou o efeito da fermentação controlada sobre a qualidade sensorial e o crescimento de fungos durante a secagem dos grãos das cultivares Arara e IPR 103. Os resultados foram expressivos: os cafés fermentados apresentaram menor desenvolvimento fúngico e melhora nas notas sensoriais quando comparados aos não fermentados.
Os cafés passaram por avaliação das características sensoriais utilizando a metodologia da Specialty Coffee Association (SCA). De acordo com esta metodologia, que é aceita internacionalmente para avaliar a qualidade da bebida de café, os cafés com pontuação acima de 80 pontos são classificados como cafés especiais.
Nos testes sensoriais, conduzido por um provador certificado, a cultivar Arara se destacou, evoluindo de 82,5 pontos no café não fermentado para 86,75 pontos após 48 horas de fermentação, alcançando um perfil sensorial mais complexo, com notas frutadas e tropicais, como mamão e coco, além de aroma limpo e marcante. Já a IPR 103 apresentou sua melhor performance após 24 horas de fermentação, elevando a pontuação de 82,5 para 83 pontos, com leve realce de doçura e notas de caramelo e mel. Esses resultados demonstram que o tempo ideal de fermentação varia entre as cultivares e que o controle adequado do processo é essencial para atingir o melhor perfil sensorial.
Neste mesmo estudo, durante a secagem, os cafés fermentados por diferentes tempos da cultivar Arara apresentaram, em média, uma redução de 29 a 65% na população de fungos em comparação ao café não fermentado. Já com a cultivar IPR 103, a diminuição foi um pouco maior, entre 59 e 65%, indicando melhor controle ou menor persistência fúngica nas mesmas condições.
Estudos recentes reforçam a importância da fermentação controlada, especialmente em regiões de baixa altitude. Pesquisas demonstram que o uso de microrganismos selecionados para conduzir o processo, prática comum na vinificação, pode aumentar significativamente a pontuação sensorial da bebida final. Outros trabalhos indicam que, nessas condições, a fermentação de frutos descascados tende a promover melhor qualidade do que a de frutos íntegros. Esses avanços reforçam que o controle da fermentação é uma estratégia simples e eficaz para agregar valor e identidade aos cafés produzidos em diferentes condições de cultivo, ampliando o potencial de competitividade no mercado de cafés especiais.
Integração entre baixa altitude e fermentação
Ao observar todos esses estudos, fica claro que o cultivo em baixa altitude é viável e que a fermentação é uma ferramenta poderosa para aprimorar a qualidade sensorial da bebida. Cultivares adaptadas ao calor, manejo ambiental cuidadoso e técnicas fermentativas controladas permitem a produção de cafés capazes de competir com os de regiões mais elevadas. Nesse contexto, a fermentação deixa de ser apenas uma etapa do processamento e passa a ser um recurso tecnológico estratégico, capaz de diferenciar e valorizar cafés em condições ambientais desafiadoras.
Conclusão
Embora a altitude continue sendo um fator relevante para a qualidade do café, as evidências mostram que regiões mais baixas podem produzir grãos de qualidade satisfatória quando o manejo é adequado. A fermentação controlada surge como um recurso essencial para potencializar atributos sensoriais e aumentar a competitividade desses cafés. Assim, a combinação de cultivares adaptadas e processos fermentativos inovadores oferece uma oportunidade real de expandir a produção de cafés especiais em altitudes menores, sem comprometer a experiência sensorial da bebida.
1 Discente do curso de graduação em Engenharia de Alimentos da Universidade Federal de São João del Rei
2 Discente do curso de graduação em Interdisciplinar em Biossistemas da Universidade Federal de São João del Rei
3 Docente do Departamento de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São João del Rei
4 Docente do Departamento de Engenharia de Alimentos da Universidade Federal de São João del Rei
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